Por Humberto Dantas
Autoria: Bruno Magalhães, gestor
público, formado pela Fundação João Pinheiro e pela UFMG, com mestrado em
Salamanca. Líder MLG, servidor público estadual em Minas Gerais, atualmente
cedido para a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Em uma visita ao Centro Cívico
Ton i Guida, no distante distrito de Nou Barris na Cidade de Barcelona, no ano
passado, escutei uma história muito alentadora sobre como a atuação do serviço
público pode efetivamente apoiar o desenvolvimento e a superação de problemas
coletivos. É sabido que Barcelona, por ser uma cidade integrada ao circuito
mundial de turismo, sofre uma expulsão urbana de suas classes mais pobres,
incapazes de pagar aluguel equivalente ao que os proprietários de imóveis
conseguem auferir alugando suas habitações para turistas.
A situação habitacional, cujo
ponto crítico deu-se nos meados finais dos anos 2000, culminou no despejo de
muitas famílias pobres e de classe média baixa, que tiveram que refugiar-se em
bairros, distritos e cidades, cada vez mais distantes do centro turístico,
gerando um movimento em cascata de “periferização”. Em protesto, a sociedade
civil catalã denunciava a situação em iniciativas como a que ficou conhecida
como “não terás casa em sua puta vida”, posteriormente transformada em livro.
Foi nessa mesma época que as
médicas e médicos da unidade de atenção básica de Nou Barris começaram a
reportar um inusitado aumento nas pacientes que se queixavam de condições como
pressão alta, dores no peito, dificuldades respiratórias e outras relacionadas.
Sabemos que grande parte da atuação tradicional da medicina opera por meio do
diagnóstico do paciente, enquanto indivíduo, para posteriormente decidir seu
tratamento, também enquanto indivíduo. Isto é, se vou ao posto médico com pressão
alta, o mais provável é que saia de lá com algumas recomendações de como devo
agir para evitar aumento de pressão (dieta balanceada, exercícios físicos,
evitar o estresse etc) e, a depender do caso, com algumas pastilhas para alívio
ou combate dos sintomas. E foi exatamente assim que as profissionais de saúde
de Nou Barris agiram no início.
Ocorre que o número de pessoas
com sintomas semelhantes seguia aumentando. O tratamento contemporâneo
tradicional, cada um cuidando da sua vida, tomando suas pastilhas curativas (ou
anestésicas), claramente não estava funcionando para aquela determinada região.
É mais, o comportamento dos pacientes sugeria que havia alguma condição comum
que os afetava ou afligia a todos. Foi aí que as médicas e médicos resolveram
alertar o Centro Cívico de Nou Barris.
A política pública de apoio a
centros cívicos e culturais comunitários na cidade de Barcelona remonta da
década de 90 e funciona mais ou menos assim. A prefeitura, a partir da
mobilização local das comunidades, cede equipamentos públicos para funcionarem
autonomamente como centros cívicos comunitários. Isso quer dizer que o poder
público não mantém esses equipamentos que, uma vez cedidos, devem ser
autogestionados pela comunidade, geralmente através de uma associação comunitária
que recolhe a contribuição dos associados e em troca oferece um espaço e
serviços comunitários, como práticas esportivas, pilates, yoga, acesso a
internet, biblioteca, orientação educacional, atendimento psicológico e
comunitário. O rol de serviços varia de acordo com cada comunidade, pois é uma
escolha local, de definição dos seus associados. Alguns centros cívicos possuem
um formato de co-gestão com a prefeitura, através de um instrumento inovador de
parceria público comunitária, ao qual voltaremos no final do texto.
O centro cívico de Nou Barris foi
construído no local onde funcionava a escola Ton i Guida (João e Maria, em
Catalão), fundada em 1962 e uma das pioneiras na renovação pedagógica que
marcou um dos pilares de resistência ao franquismo no pós-guerra civil
espanhola. Reinaugurado após uma reforma com a participação do poder público no
ano de 2006, o Centro Ton i Guida recebeu a demanda das médicas e médicos e
pôs-se a conversar com as pacientes que apresentavam as condições relatadas. Aos
poucos, descobriram uma característica comum a elas. Em sua grande maioria,
eram pessoas que estavam em ameaça ou em situação de despejo de suas casas.
Nesse ponto, vale ressaltar que Nou Barris é um distrito com identidade,
construído por trabalhadores, trabalhadoras e agentes sociais que construíram
seus nove bairros, muitas vezes opondo-se aos abusos do urbanismo caótico do
desenvolvimentismo adotado por Franco. Isto significa que as pessoas que ali
viviam estavam ameaçadas de muito mais do que perder suas moradias, estavam
ameaçadas de perder parte da sua história, o direito de viver na casa
construída por seus familiares, nas ruas construídas pelas suas vizinhas.
Diagnosticada a condição
comunitária, cujos sintomas expressavam-se individualmente nos habitantes do
Nou Barris, o Centro Ton i Guida serviu de espaço de articulação de protestos e
apoio comunitário contra os despejos. O apoio comunitário envolvia desde rodas
de conversa que estreitavam laços de solidariedade entre os locais, até auxílio
jurídico para os mais necessitados. Os protestos, por sua vez, envolviam desde
manifestações contra o despejo, até atos de bloqueio físico dos mesmos, como
reunião e vigília de vizinhos em frente a um apartamento para evitar que a
família que ali reside fosse despejada.
Algumas vezes bem-sucedida,
outras não, a comunidade de Nou Barris avalia hoje que conseguiu resistir ao
pior momento do boom imobiliário de Barcelona, mantendo sua identidade por meio
da ação coletiva de seus habitantes.
A história do Centro Ton i Guida, embora muito inspiradora, compõe um ecossistema mais amplo de empreendimento e inovação social e comunitária existente hoje na cidade de Barcelona. Diante dele, a prefeitura tem corretamente apostado em uma gestão aberta, participativa, que incentiva, sem sufocar, as iniciativas de autogestão existentes por todos os lados. Outro caso emblemático é a cessão de vazios urbanos, terrenos públicos abandoados, para a gestão das associações comunitárias, por meio de um edital público de seleção de projetos, o Pla BUITS (Buits, significa vazios, em Catalão), atualmente chamado de Patrimônio Cidadão. Antes abandonados, os terrenos públicos hoje estão dedicados a hortas comunitárias, centros de inovação social ou espaços de atividades culturais comunitárias.
Para garantir a gestão de tais
espaços, a prefeitura utiliza-se de um formato inovador da parceria entre o
setor público e a iniciativa privada. Trata-se da Parceria Público Comunitária,
que estabelece um contrato de co-gestão ou de autogestão dos espaços públicos,
fortalecendo a autonomia e identidade das comunidades, além de permitir a
inovação local em termos de serviços coletivos. O instrumento está baseado no
conceito de comuns urbanos ou pro-comuns.
Tais conceitos, por sua vez,
fundamentam-se na análise da ganhadora do Nobel de Economia em 1990 Elinor
Ostrom, que demonstrou que os bens comuns podem ser administrados de forma
eficiente por um grupo de pessoas usuárias, em resposta à ideia de tragédia dos
comuns, então prevalecente no campo.
A proposta das parcerias público comunitárias, estudada de maneira crítica e aprofundada, tem o potencial de constituir uma plataforma promissora para a gestão urbana comprometida com a inovação e o fomento à auto-gestão. Vale, pois, a atenção dedicada das estudiosas, estudiosos, profissionais e entusiastas do Campo de Públicas no Brasil.
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