Ao
longo de 350 anos, a escravidão foi legal no Brasil Colônia e no Brasil
Império. Tornando a escravidão ilegal, a Lei Áurea teria desfeito o pacto
político que mantinha o Brasil como único país imperial na América Latina e
como o último a manter a legalidade do sistema escravocrata. Ainda que não
houvesse correlação entre a abolição e a queda do império, o fato é que a
República mantém até hoje privilégios legais, embora imorais, defendidos pelos
que os recebem, tanto quanto os escravocratas defendiam seus direitos à posse
dos escravos. O foro privilegiado para milhares de detentores de mandatos
eletivos é um exemplo dessas legalidades indecentes, resquícios da sociedade
imperial e escravocrata.
Todos
os servidores que recebem auxílio-moradia estão corretos individualmente em
dizer que recebem um benefício legal. Não é roubo, não é propina, mas, ao ser
legal, o benefício fica ainda mais imoral, porque mostra uma República que
legaliza privilégios. Nas últimas semanas, temos visto a argumentação de
respeitados juízes defendendo privilégios sob o argumento de que é legal, sem
considerar que são incompatíveis com a decência republicana. O juiz Moro, maior
símbolo da luta recente pela moralidade na política, usa o argumento de que
isso é para compensar a falta de reajuste salarial nos últimos dois anos. Não
só se beneficia como utiliza a terminologia de auxílio-moradia para driblar e
burlar a lei que define os salários. Um argumento indecente para justificar o
privilégio que o trabalhador comum não recebe.
Da
mesma forma, diversos servidores ultrapassam o teto salarial do serviço
público, definido pela Constituição Federal, com a mudança terminológica que o
teto é para o salário, não para os múltiplos agregados que se somam para formar
a remuneração. É a legalização da indecência a que a República se acostumou,
tanto quanto o império.
O
mais escandaloso desses truques que burlam a moral é que se apresentam como uma
indecência legal. Se esse argumento prevalecer, os juízes aposentados deveriam
ter direito a auxílio-moradia. Inclusive um juiz preso em sua casa própria, mas
com direito ao auxílio-moradia para compensar a perda salarial, devido à
inflação. Se os demais trabalhadores não têm esse direito, não há justificativa
moral para juízes e procuradores também terem, assim como os parlamentares que
fazem as leis e são campeões de privilégios legais, porém indecentes.
Nada
justifica o parlamentar definir seu próprio salário 35 vezes maior que o
salário mínimo recebido por seus eleitores, e ainda forçar o eleitor a pagar o
aluguel da sua casa e também da casa do senador ou do deputado sob a forma de
auxílio-moradia. Com o salário que recebe, não há razão para juiz ou
parlamentar não pagar o aluguel de sua casa.
Privilégios
legais, mas indecentes como esses de parlamentares e juízes, estão corroendo a
Democracia e a República. Até o auxílio-moradia era legal, mesmo aos deputados
federais e senadores que eram moradores em Brasília e representavam o Distrito
Federal. Até hoje é permitido acumular salário de parlamentar com aposentadorias,
mesmo indo além do teto constitucional. Felizmente, alguns se recusaram a
receber essas ajudas por fugirem à regra. Pode ser legal a construção dos
palácios onde funcionam os poderes Legislativo e Judiciário, mas é indecente
construir essas obras faraônicas enquanto, ao lado deles, milhões de famílias
não têm saneamento.
O
senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP) apresentou um projeto de lei acabando com
o auxílio-moradia; o deputado Pedro Cunha Lima (PSDB / PB) apresentou outro
acabando com os carros chapas-branca que assolam a República, nos três Poderes.
Esses são os mais visíveis dos privilégios legais, mas não são os únicos. A
sociedade brasileira se acostumou com o privilégio de que a educação dos filhos
dos ricos deve ser melhor do que a educação dos filhos dos pobres, tomando isso
como algo legal, sem perceber que, além de indecente, essa desigualdade é
estúpida por impedir o desenvolvimento do potencial dos cérebros de milhões de
brasileiros. Com isso, concentra a renda, impede o aumento da produtividade e
da criatividade na economia, insufla violência e desagrega a sociedade,
reproduzindo o maldito sistema de privilégios legais que povoam a sociedade
brasileira.
Cristovam Buarque é Senador pelo PPS-DF e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Ascom Gabinete do Senador Cristovam Buarque
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